Diante da urgente necessidade de se fazer análise crítica e porque não, autocritica o movimento espirita usa indevidamente frases soltas para barrar o exame de obras mediúnicas, o que evitaria esta avalanche desvirtuadora em nome da “caridade”, como evita se auto avaliar.
Seriam sempre desencorajadores no sentido da análise crítica, os ditados recebidos por Chico Xavier? Num deles, por exemplo, Emmanuel orienta: “[...] Guiar-se pela misericórdia e não pela crítica. Abençoar sem reprovar. [...] Deter-se nas qualidades nobres e olvidar as prováveis deficiências do próximo. Valorizar o esforço alheio”. Enunciados que são de grande valor. Todavia, sentenciados, sem contexto, tornam-se absolutos e, por efeito, de aplicação eventualmente nociva. E era mesmo isso que queria Emmanuel? Ou seria o que é mais provável em relação a “crítica negativa”, “leviana”, mais para denegrir do que esclarecer.
Pergunto ao leitor se não estão de fato ressoando entre nós os ecos receiosos dos cismas porque nosso movimento não sabe dialogar sem brigar, estamos assim tão inchados de orgulho?
São Luís orientava Kardec de modo diverso, como descrito em O Evangelho segundo espiritismo capitulo 10, itens 20 e 21, relativo ao “não julgueis”: “Tudo depende da intenção. Certamente que não é proibido ver o mal, quando o mal existe. Seria mesmo inconveniente ver-se por toda a parte somente o bem: essa ilusão prejudicaria o progresso. [...] Se as imperfeições de uma pessoa só prejudicam a ela mesma, não há jamais utilidade em divulgá-las. Mas se elas podem prejudicar a outros, é necessário preferir o interesse do maior número ao de um só. Conforme as circunstâncias, desmascarar a hipocrisia e a mentira pode ser um dever, pois é melhor que um homem caia, do que muitos serem enganados e se tornarem suas vítimas”.
Diante disto, vamos continuar renovando o nosso cômodo pedido aos espíritos e a Deus para que façam pelo Espiritismo o que nós mesmos devemos fazer? Por outra, não são os espíritos tachados de embusteiros quando se pronunciam sobre assuntos “polêmicos”? A valiosa contribuição que nos poderiam dar para a solução de certas dificuldades não é, ao demais, desencorajada pela ideia, balda de fundamento, de que questões “polêmicas” não devem ser propostas aos espíritos, sob pena da grande probabilidade de ocorrerem mistificações? Mas e quanto aos critérios que para superar estes escolhos o Espiritismo nos oferece? De nada vale o saber acumulado e metodicamente transmitido pelo mestre de Lyon em suas obras? Convém relembrar o n. 287 de O Livro dos Médiuns: “Pensam algumas pessoas ser preferível que todos se abstenham de formular perguntas e que convém esperar o ensino dos espíritos, sem o provocar. É um erro. Os espíritos dão, não há dúvida, instruções espontâneas de alto alcance e que errôneo seria desprezar-se. Mas, explicações há que frequentemente se teriam de esperar longo tempo, se não fossem solicitadas. Sem as questões que propusemos, O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns a inda estariam por fazer-se, ou, pelo menos, muito incompletos e sem solução uma imensidade de problemas de grande importância. As questões, longe de terem qualquer inconveniente, são de grandíssima utilidade, do ponto de vista da instrução, quando quem as propõe sabe encerrá-las nos devidos limites.
Têm ainda outra vantagem: a de concorrerem para o desmascaramento dos espíritos mistificadores que, mais pretensiosos do que sábios, raramente suportam a prova das perguntas feitas com cerrada lógica, por meio das quais o interrogante os leva aos seus últimos redutos. Os espíritos superiores, como nada têm que temer de semelhante questionário, são os primeiros a provocar explicações, sobre os pontos obscuros. Os outros, ao contrário, receando ter que se haver com antagonistas mais fortes, cuidadosamente as evitam. Por isso mesmo, em geral, recomendam aos médiuns, que eles desejam dominar, e aos quais querem impor suas utopias, se abstenham de toda controvérsia a propósito de seus ensinos”.
Como se observa, Kardec recomenda expressamente a controvérsia humana sobre o ensino dos espíritos, isto é, aquela polêmica útil, aquela discussão séria dos princípios professados pela Doutrina, aquele discernimento dos pontos fracos e fortes das comunicações mediúnicas.
O fato é que, enquanto o cientificismo e o religiosismo não se entendem, o sincretismo vai sobrevivendo no movimento espírita, à sombra da estrutura conceitual da codificação Kardeciana, à custa de aviltá-la quanto possa, simulando uma compatibilidade fictícia, como nos casos do Ramatisismo, Roustanismo, Apometria, e vários etcs para os quais também nos advertia Herculano Pires: “Além das confusões habituais entre Umbanda e Espiritismo, Esoterismo, Teosofia, Ocultismo e Espiritismo, há outras formas de confusão que vêm sendo amplamente espalhadas no meio espírita. São as confusões de origem mediúnica, oriundas de comunicações de espíritos que se apresentam como grandes instrutores, dando sempre respostas e informações sobre todas as questões que lhes forem propostas.
Um exemplo marcante é o de Ramatis, cujas mensagens vêm sendo fartamente distribuídas. Qualquer estudioso da doutrina percebe logo que se trata de um Espírito pseudossábio, segundo a “escala espírita” de Kardec. Não obstante, suas mensagens estão assumindo o papel de sucedâneos das obras doutrinárias, levando até mesmo oradores espíritas a fazerem afirmações ridículas em suas palestras, com evidente prejuízo para o bom conceito do movimento espírita. Não é de hoje que existem mensagens dessa espécie. Desde todos os tempos, espíritos mistificadores, os falsos profetas da erraticidade, como dizia Kardec, e espíritos pseudossábios, que se julgam grandes missionários, trabalham, consciente ou inconscientemente, na ingrata tarefa de ridicularizar o Espiritismo.
Mas a responsabilidade dos que aceitam e divulgam essas mensagens não é menor do que a dos espíritos que as transmitem. Por isso mesmo, é necessário que os confrades esclarecidos não cruzem os braços diante dessas ondas de perturbação, procurando abrir os olhos dos que facilmente se deixam levar por elas. O Espiritismo é uma doutrina de bom-senso, de equilíbrio, de esclarecimento positivo dos problemas espirituais, e não de hipóteses sem base ou de suposições imaginosas. As linhas seguras da doutrina estão na codificação Kardeciana. Não devemos nos esquecer de que a codificação representa o cumprimento da promessa evangélica do Consolador, que veio na hora precisa. Deixar de lado a codificação, para aceitar novidades confusas, é simples temeridade. Tanto mais quando essas novidades, como no caso de Ramatis, são mais velhas do que a própria codificação”.
Ante a mais completa ignorância destes tão vastos alcances da doutrina, Herculano dizia mais: “Que a passividade da massa espírita, anestesiada pelo sonho da salvação pessoal, do valor mágico da tolerância bastarda, da crença ingênua do valor sobrenatural das esmolas pífias, vai minando em silêncio o legado de Kardec." Corajoso, o filósofo de Avaré assegurava ainda que o medo do pecado que sai da boca, da pena ou das teclas é que faz desaparecer do meio espírita o diálogo do passado recente, substituindo o coro dos debates pelo silêncio místico das bocas de siri. Para Herculano, ninguém fala para não pecar e peca por não falar, por não espantar pelo menos com um grito as aves daninhas e agoureiras que destroem a seara. E sobre os periódicos espíritas, afirmava o ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo: “A imprensa espírita, que devia ser uma labareda, é um foco de infestação, semeando as mistificações de Roustaing, Ramatis e outras, ou chovendo no molhado com a repetição cansativa de velhos e surrados slogans”.
O que pensar das propostas de um Espiritismo esotérico, de feição new age, diluído no chamado “livre pensamento espiritualista”? Mas livre de que, afinal? De toda lógica, de todo rigor; mesmo porque este “livre” pensamento não passa, o mais das vezes, de ressurreição dos residuais míticos, místicos e mágicos do passado ancestral. Esta, a razão de nosso Herculano Pires haver lembrado que a intensa e comovente batalha de Léon Denis, na França e em toda a Europa, foi contra as infiltrações de doutrinas estranhas, de espiritualismos rebarbativos, no meio espírita, para mostrar que o Espiritismo é uma nova concepção do homem e da vida, que não se pode confundir com as escolas espiritualistas ancestrais, carregadas de superstições e princípios individualmente afirmados, ou provindos de tradições longínquas, sem nenhuma base de critério científico.
Fica-me o lamento por doutrinas destoantes da codificação kardeciana encontrarem respaldo na invigilância do movimento espírita. Mas, ao contrário do que aconteceu aos ingênuos troianos, podemos evitar que estas doutrinas mais estendam sua influência nefasta e terminem diluindo o Espiritismo no Espiritualismo.
Kardec entendia que o conflito de opiniões é “consequência inevitável do movimento que se processa”. O mestre dizia que estes embates “são mesmo necessários, para melhor fazer ressaltar a verdade”. Ao contrário da apatia que se propaga como conduta exemplar ante as divergências e mesmo dissidências, o Codificador preconizava, sobre os conflitos de opiniões, que “é também útil que eles surjam no começo, para que as ideias falsas sejam mais rapidamente desgastadas”. Piedoso, o mestre ainda consola os vacilantes, dizendo aos “espíritas que revelam alguns temores” que “devem ficar tranquilos”, pois “todas as pretensões isoladas cairão, pela força mesma das coisas, diante do grande e poderoso criterium do controle universal” conforme introdução II de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Alguns poucos, encarnados e desencarnados, querem impor-se, no entanto, ao ensino concordante dos espíritos, e fazem ouvidos moucos às melhores recomendações kardecianas, esforçando-se em cumprir a profecia que a este respeito foi dirigida a Kardec pelo Espírito de Verdade: “As tuas melhores instruções serão desprezadas e falseadas”, Obras Póstumas. 12/06/1856.
Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. [...] seitas poderão formar-se ao lado da doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da doutrina, por efeito de interpretação dos textos. [...] Tomando a iniciativa da constituição do Espiritismo, usamos de um direito comum, o que todo homem tem de completar, como o entender, a obra que haja começado e de ser juiz da oportunidade. Desde o instante em que cada um é livre de aderir ou não a essa obra, ninguém se pode queixar de sofrer uma pressão arbitrária. Criamos a palavra Espiritismo, para atender às necessidades da causa; temos, pois, o direito de lhe determinar as aplicações e de definir as qualidades e as crenças do verdadeiro espírita. [...] Se a constituição tem por efeito diminuir momentaneamente o número aparente dos espíritas, terá, por outro lado, como consequência, dar mais força aos que caminharem de comum acordo para a realização do grande objetivo humanitário que o Espiritismo há de alcançar. Eles se conhecerão e se estenderão mutuamente as mãos, de um extremo a outro do mundo. (Obras Póstumas. 12/06/1856). Segundo o Codificador do Espiritismo, o que deve importar ao movimento espírita é a qualidade, não a quantidade dos adeptos. Logo, só a obra de Allan Kardec, estudada, respeitada, sincera e fielmente divulgada, pode dar-nos uma legítima Unificação Espírita. Roustanismo, Ubaldismo, Ramatisismo, e quejandos representam, conforme previu Kardec, seitas que se formaram “ao lado da doutrina, porém não dentro da doutrina”. Trata-se de espiritualismos, não de Espiritismo. Bem se vê quanto estamos distantes da estrada segura percorrida pelo Codificador e pelos espíritos superiores que sempre o assistiram e orientaram.
Encontramo-nos enveredados nos atalhos escuros em que nosso orgulho e egoísmo nos embrenharam, fantasiados de humildade e temperança.
Teses como roustanismo, dentre tantas outras não são simples divergências. Tratam-se de uma dissidência declarada e aberta.
De tudo, milhares de livros, papel e tinta, a confusão nas estantes, sempre bem acessível aos neófitos que chegam às casas espíritas e aos incautos leitores em busca de um Consolador que lhes dê milagrosas respostas. Só se pode julgar do que foi publicado. Eis a verdade. Cabe, pois, aos espíritas atentos a apreciação rigorosa de toda obra mediúnica, segundo os padrões de Kardec. Este deve ser o procedimento dos adeptos estudiosos, e a produção atribuída a qualquer Espírito não pode nem deve escapar a isso, seja quem for ou quem se diga ser. Não procedendo a criteriosa crítica, não passa de temeridade, com lamentáveis consequências já em curso. Na prática, isto é licitar ao Espiritismo que erros manifestos sejam arrolados à conta de patrimônio das consolações que prodigaliza a seus adeptos.
Encaminhemos aos simples à segurança e pureza da fonte original do Espiritismo, à codificação kardeciana, em vez de entretê-los com equívocos e superstições que, mais tarde, os surpreenderão desprevenidos e, quem sabe, os convidarão à apostasia. O que disse Erasto a Kardec?
Deve-se eliminar sem piedade toda palavra e toda frase equívocas, conservando no ditado somente o que a lógica aprova ou o que a Doutrina já ensinou. [...] Na dúvida, abstém-te, diz um dos vossos antigos provérbios. Não admitais, pois, o que não for para vós de evidência inegável. Ao aparecer uma nova opinião, por menos que vos pareça duvidosa, passai-a pelo crivo da razão e da lógica. O que a razão e o bom-senso reprovam, rejeitai corajosamente. Mais vale rejeitar dez verdades do que admitir uma única mentira, uma única teoria falsa. Com efeito, sobre essa teoria poderíeis edificar todo um sistema que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento construído sobre a areia movediça. (O Livro dos Médiuns, 230).
Izaias Lobo Lannes. 03/09/2020.
Foto: Garidy Sanders - unsplash.com
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